Monday, October 3, 2011

Pode um ovo fora da validade devolver a paz a um homem perdido?

Receita: Junte 39 palavras nordestinas, vontade de escrever, imaginação q.b. e cozinhe uma história gulosa até ao fim, de fácil digestão e com uma pitada de ironia. Leia, leia até estar farto. Não deixe o ovo ficar podre. Leia.


Abigobel — desatento
Abilolado — pessoa sem juízo
Achinchelar — usar ténis como chinelos
Afolosar — abrandar
Aí vareia — depende
Alpercata — sandália de dedo
Acochar — apertar
Avie- flexão verbal de “aviar”, mesmo que apressar
Ariado — desnorteado

Bater a caçuleta — morrer
Boyzinha- moça bonita
Bizonho — feio e idiota
Borréia — sem qualidade
Bozó — dados
Breado — sujo, borrado
Bruguelo — bébé
Buceta - vagina

Caboré — homem esquisito
Cacete - pénis
Caningar — chatear
Carne de Sol- comida típica
Dê uma carreira- vá rapidamente!
Descatitar — acelerar, correr
Eita Píula! — interjeição de espanto
Em Riba — em cima

Godela — conseguir algo sem pagar
Goipada — cuspidela
Gorado — ovo estragado
Inhaca — mau cheiro da axila
Infeliz das costa oca — expressão para insultar alguém

Lenhou-se — ficou em má situação
Leso- parvo

Macaxeira- mandioca.
Mãínha/paiínho/vóinha - modo carinhoso de chamar mãe/avó/pai
Malassombrado — mal assombrado; um homem qualquer
Malamanhado — pessoa desleixada
Muriçoca - mosquito

Né onda não!- Não é brincadeira
Pixototinho — muito pequeno
Pleura — um lugar qualquer, mas bem na mosca
Priziaca — pessoa aborrecida
Prumode? — para quê?

Rapariga - prostituta, mulher de má fama
Reada — pancada, bofetada
Rugi-rugi — tumulto, muita gente
Segunda — trago de cigarro
Tamborete de forró — pessoa pequena
Tisna — cinza de vela
Torar — quebrar, partir
Trololó — conversa fiada
Vixe! - interjeição de espanto
Vogar- Valer a pena
Xanha — comichão na pele
Xeleléu — pessoa chata
Zonar — zombar, gozo
Zunhada — arranhão de unhas

Lurdinhas, a caminho dos trinta, tinha assim um jeito meio abigobel de ser. Tudo parecia passar-lhe ao lado mas sabia cozinhar como ninguém. Trabalhava no restaurante-bar da praia desde o início do Verão, servindo os clientes e passeando-se por entre as mesas achinchelando os ténis Puma coloridos acabados de comprar com as gorjetas ganhas, as alpercatas amarelo-sujo arrumadas debaixo do balcão. As mulheres achavam-na meio abilolada, já a clientela masculina via nela uma boyzinha. Ao dono do bar, um tipo bizonho, era indiferente servir uma autêntica borréia a maior parte das vezes. No pino do Verão, casa cheia, o Joaquim a queixar-se do ovo gorado e ele a virar-se para o cliente queixoso e a dizer-lhe numa vozinha mimada e fina como a de um bruguelo chorão: - Quer um ovo fresco? Olhe, ponha-o você. – E acto contínuo vira-lhe as costas arrancando de dentro de si a maior goipada que Lurdinhas jamais ouvira.
O patrão José era um caboré, pouco falador , sempre metido consigo. Mas nem sempre fora este estorvo de simpatia. Homem para cinquenta anos, vivia sozinho desde a morte violenta e misteriosa da mulher, desdita que ainda hoje dá aso a trololó sem fim. Só desde aí se tornara um malamanhado. José vem para o restaurante de manhãzinha e regressa noite funda a casa montado na sua velha bicicleta, como sempre fez. Nos dias felizes José não era leso nenhum. Ambicioso, deixara um sítio para lá de esquecido, uma pleura desgraçada, no interior, e com a herança que recebera dos pais comprara o restaurante bar Dom Copo, junto ao mar. As fotos da “querida mãínha” e do “querido paiínho”, mortalmente atropelados por um estrangeiro ao volante de um jeep, ainda hoje estão na parede atrás do balcão. Levava então uma vida dura que desejava muito afolosar para se dedicar à sua querida Rosa. Sabia que o tempo é uma vertigem, logo era de acochar o mais que pudesse, em especial durante o Verão, com a praia cheia de turistas.
Rosa era uma beleza. Assim que José botou olhos na rapariga apaixonou-se de corpo e alma e tomou-a para si sem mais questões. O patrão era um homem do mais pixototinho mas bem parecido. E para parecer mais alto andava sempre muito empertigado. A toda a vez que o caningavam por causa da altura, presumindo idêntico o tamanho do seu cacete, ele apenas tirava uma segunda e empertigava ainda mais o peito estreito mas fibroso. Não era homem de resolver nada à reada, aliás não conseguiria esmagar nem um muricoca com a sua palma da mão nua por respeito à vida que Deus criara. Mas como ele desejava não ser um tamborete de forró. Ambos, seu pai e sua mãe, tinham uma estatura normal, era estranho que ele tivesse crescido tão pouco. O desejo de crescer estava presente nas suas orações desde jovem. Era um pedido insistente que colocava a todos os santos que coleccionava na cómoda do seu quarto. Mas nunca crescera nem mais um centímetro! Nem os santos nem Deus lhe ligavam nenhuma. Vivia secretamente atormentado por isto mas compensado por ter Rosa a seu lado, por ela é que a vida era de vogar, ultrapassava tudo. Tudo é dizer muito já que continuou a rezar para crescer, até mesmo na prisão, nessa altura até mais ainda. Se ela vinha de vez em quando ao restaurante era só para se distrair, ver as vistas. Ele não deixava que ela botasse a mão num prato, nem que carregasse um saco de macaxeira para o armazém. Prumode? Para isso havia os empregados, três ou cinco, e não uma Lurdinhas apenas, como agora.
Foi numa ocasião assim que as vidas da bela Rosa e Eurico se cruzaram. Eurico, um quarentão espadaúdo e morenaço, estava de passagem pela vila e tinha a paixão do bozó. Sentava-se a uma mesa e ali ficava até o Dom Copo fechar, jogando com quem se fizesse à lide. Estava sempre pronto prá godela e aliciava todos os que passavam para lhe matarem a sede. – Amigo, dê uma carreira e traga-me um líquido fresquinho que estou com securas. Né onda não! - E dizia isto a contorcer as costas largas contra a cadeira por causa da maldita xanha que não o largava. José embirrou com ele assim que o topou, sentado à mesa a primeira vez, cabelos longos puxados para trás, breado nas calças e camisa, até parecia que tinha andado à luta na poeira do chão, diabo malassombrado como poucos que por ali vira. Não dizia de onde vinha nem para onde ia. Um aroma envinagrado a inhaca desprendia-se dele quando José se inclinou sobre o seu lado direito, colocando o prato de carne de sol sobre a mesa. – Amigo, que mulheraça é aquela ali na mesa do fundo? Bem que me sabia uma zunhada sua mais pela noite. O pequeno José teve vontade de torar a mesa, a cadeira e as costas do viajante, primeiro a cadeira nas costas daquele infeliz da costa oca, o cachaço em riba do prato e dos talheres depois, e tudo o mais! Mas em vez disso, apenas disse, a ferver por dentro: – É a minha mulher. Avie-se lá e ponha-se a andar. O outro, com voz de quem está mesmo a zonar, replicou: - Aí vareia, meu amigo, aí vareia. O que é certo é que o grande Eurico se pôs a andar e daí a dois dias foi encontrado morto, de bruços, uma centena de metros à frente da casa de José. E lá dentro encontraram Rosa semi–nua com marcas de dedos à roda do pescoço e a buceta inchada, morta na cama desmanchada, sob o olhar sereno dos santos sobre a cómoda e mesinhas de cabeceira, rodeada de velas, umas ainda acesas, outras apagadas, tisna espalhada, até parecia um altar do demónio, aquele quarto.
José contou à polícia em poucas palavras que surpreendera o vil criminoso já a descatitar para longe, que tinha ido no seu encalço e que o tinha morto com arma de fogo e que até tinha licença (não disse porquê, mas um homem pequeno talvez se sinta mais seguro na posse de uma arma) e que era culpado, que o levassem preso. Lenhou-se à grande o pequeno José. O local do crime foi motivo para o maior rugi-rugi de que há memória nas redondezas: - Vixe!, ela tinha um pacto com o diabo, a rapariga!- Diziam uns. – Quem nasce para a vida não lhe perde o gosto. - Diziam outros. Coitadinha, estrangulada e violada, que horror ! - Exclamavam ainda. Ninguém lastimava José por ter perdido a razão do seu viver, apenas cochichavam que da noite para o dia o patrão virara assassino e viúvo.
O dono do Dom Copo cumpriu a sua pena e, anos depois, quando saiu da prisão e regressou estava diferente, um priziaca qualquer, sempre soturno. Nunca mais o viram de peito empertigado, até parecia ter mirrado alguns centímetros mais no chilindró. Quando de madrugada regressava a casa na sua bicicleta chorava e berrava como um doido pela estrada isolada só com as estrelas por companhia. Quem o ouviu dizia que só podia estar louco e que tanta loucura só podia ser culpa e remorsos não totalmente espiados na prisão. A gente da praia começou a fabricar uma história dentro da história: José matara os dois! Infame! Devia estar ainda preso e não a servir comida e bebida aos turistas no Dom Copo.
Eita píula! Lurdes viu que o musculado cliente estava a ficar um pouco ariado e que dali não ia sair coisa boa. O patrão até podia dar-se ao luxo de perder clientela mas ela precisava mesmo daquele trabalho. Joaquim não era nenhum leso, apesar de ser completamente xeleléu o homem tinha opinião, sabia o que queria. Um ovo assim, sabia Lurdinhas, redondo para lá da validade, até dava para bater a caçuleta, e isto não adivinhava sequer Joaquim, que era duas vezes o patrão em altura e largura. – Joaquim - disse Lurdinhas pondo água na fervura - sente-se que eu preparo uma comidinha boa feita no céu só para você. Mas Joaquim nem lhe prestou atenção. Seguiu o patrão até ao armazém e aí ficaram os dois.. Ninguém cuidou de ver o que estava a acontecer. - Moça, pode trazer agora essa comida – disse Joaquim a Lurdes, talvez uma meia hora depois, as mãos ensanguentadas, a caminho dos lavabos. - Foi só para ele aprender a ter tento na língua, - disse.
A partir desse dia nunca mais ouviram o patrão gritar ou chorar a caminho de casa na sua bicicleta pela estrada isolada. Tinha perdido a faculdade de usar a voz. Ao murro nos queixos o Joaquim resolvera a culpa e os remorsos não espiados do pequeno José, e por isto lhe ficou este eterna e silenciosamente grato.



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